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Jun18
EMÍLIO MIRANDA - POESIA É REDENÇÃO?
I
Nos lugares assinalados
Com a poalha dos teus passos
Faço um poema triste.
É bom que não te esqueças
De todos os invernos passados.
II
Pode haver tantas batalhas perdidas
Que acabes por duvidar que é possível vencer a guerra
Mas a vida é pela sua natureza
Uma sucessão de batalhas
E ninguém saberá jamais como termina
Por isso enquanto fores vivo
É sempre possível assinar a paz
Para começar uma guerra nova
Tantas vezes quantas achares
Que é possível vencer.
Haverá muito quem pense que és um derrotado
Ou que a desistência define a tua covardia
Mas ninguém poderá afirmar
Que conhece a tua vontade
Mais do que conhece a dos deuses.
Ou tão pouco que eles representem uma verdade
Mais válida do que a tua.
III
Entre nada e qualquer coisa, um pensamento apenas: tu!
E é com este pensamento que se constrói um mundo pouco maior do que este
Onde os dias se sucedem entre poemas vãos.
IV
A poesia é um alimento tão nutritivo
Quanto um prato de feijão ou um naco de carne
O importante é que não te empanturres
Ao ponto de ficares tão gordo que não atravesses o buraco de uma agulha
Lembra-te que se é fácil para um camelo passar por um
Mais fácil deverá ser que tu o faças.
Qualquer buraco de agulha
Pode ser uma entrada para o céu.
E lá chegado, não estranhes que haja outros camelos
Espantados por terem entrado
Há muitos a tentarem todos os dias
E muitos mais que entrarão!
V
A vida é uma incógnita, em todas as suas dimensões.
Se mais amares, mais amado serás? Se mais cruel, mais lembrado?
O mundo é um lugar estranho, povoado por gente sem paradigmas.
Por isso todos são plausíveis, e para ti haverá também um legado
Anunciando caminhos e soluções.
Mas o mais certo é que sejas tu a desvendar
Entre a muita terra e o muito mar
O lugar de paz ou de guerra onde serás nómada ou sedentário,
Pragmático ou sonhador
Vidente ou evidente. Ou, quem sabe, mais um entre tantos…
VI
Melhor seria que o alimento do corpo
Fosse tão etéreo como aquele que te sacia o espírito
Duas ou três palavras ditas ao crepúsculo
Ou quando despertas de uma noite sem sono
Tão reparado como se no lugar do coração tivesses um berço calmo
Onde dormisse a inocência que tinhas quando nasceste;
Duas ou três palavras ditas ou tão-somente pensadas
– Sussurradas para dentro do pensamento, leia-se –;
Duas ou três palavras inventadas
E transformadas em claríssimo verso.
VII
Já pensaste como são inconvenientes os dias em que acontecem mais coisas do que as que querias?
O quanto melhor seria se pudesses dizer: basta!
Mas isso seria como fazer chover quando faz sol. Com esse poder serias melhor ou pior?
E o mundo à tua volta teria mais luz?
VIII
Talvez a poesia não seja redenção
Nem sequer música para o teu espírito
Mas pode bem ser o fio com que teces os teus pensamentos,
Ou antes o tecido que pacientemente transformas em fio:
Todo o poeta é um alfaiate teimoso…
IX
É mais importante o poema ou o arado?
Melhor será que o comparado seja comparável
Ou que o poeta saiba ligar o que parece desligado.
E então, o poema transforma-se em chão e o arado pode cumprir a sua função
Como instrumento que faz brotar a palavra, liberta de significados adversos.
X
Toda a seara tem um semeador,
Mas nem todo o semeador é dono de uma.
Em tudo há poesia, até num mau poema, mas não se julgue que todas as verdades são apaziguadoras. Há muitos paraísos fundados em mentiras!
XI
Bom, talvez um poema não seja tão importante
Talvez mais tarde ou mais cedo possa existir lucidez suficiente
Para discernir entre tantas esta questão
Incógnita revestida de presunção que acompanha o pretenso poeta.
XII
Perguntas: O que sou com o que faço com as palavras?
Um semeador ou um arado?
Quando escrevo, arranco o que estava semeado
Ou semeio versos?
Sou um poeta ou um mentiroso?
XIII
E perguntas:
A vida é uma verdade cheia de mentiras
Uma mentira cheia de verdades,
Ou uma interrogação cuja resposta
Ignoras?
E o amor? Sabes do que falas quando
Falas de amor?
Ou trata-se de mais uma incógnita
Acerca da qual divagas?
Há muito quem julgue saber
Há muito quem erre sabendo
Há muito quem procure errando…
E tu: erras quando?
XIV
As sombras nascem à janela com o sol oblíquo
E espreitam dentro dela, sem pudor
Do ventre à mão aberta,
Enquanto uma voz
Sussurra:
Li
Berta
Te
Do teu torpor!
Liberta-te do suor
Que em vão te percorre!
O amor altera o sabor
Do que a tua alma devora
E a voz que por dentro e por fora
Te murmura:
Não fugirás à tua sorte
Seja na vida seja na morte!
Ignora-a
E recomeça agora!
XV
Ah, a lembrança é um excelente instrumento de sobrevivência…