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Abr20
A. M. PIRES CABRAL - VALAS COMUNS
Em algum longínquo país convulso,
algumas décadas atrás,
os senhores cuja missão é mandar
(missão que — dizem eles — lhes foi directamente
confiada por Deus ou pelos deuses)
mandaram abrir uma vasta vala
destinada a recolher sumariamente
— quantos? cem? trezentos? mil? —
corpos esbulhados de nome e ideais,
que ali jazem de costas uns para os outros,
promíscuos, descompostos,
uns com uma bala alojada no peito,
outros na nuca.
Passados anos foi descoberta a vala,
revelado o seu sombrio conteúdo.
Passou a notícia na televisão
(que teve o cuidado de avisar
que algumas das imagens
eram susceptíveis de — etc. e tal).
O bom espectador sentiu um muito leve
arrepio a percorrer-lhe a espinha,
remexeu-se incomodado no sofá.
Cá em Portugal não temos disto,
pensou com alívio. E não levou mais longe
a resposta às incómodas imagens.
Mas pelo sim pelo não, mudou de canal.
Mal ele sabe que a essa mesma hora,
noutra parte do mundo, não importa qual,
é bem provável que bulldozers se afadiguem
a abrir outras valas que —
como esta que se viu na televisão —
reclamam carne, ossos, dentes e cabelos,
nomes e idades e razões para morrer.
Quer-me parecer que a própria história
— essa impudente mentira travestida de verdade —
não é mais que uma insalubre vala
comum que abre para nós a sua insaciável
boca — onde docilmente nos devemos precipitar,
depois de nos terem sido confiscados
identidade, credo, expectativas.