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Jun20
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL - A QUEDA a MÃE
Sobre o sofrimento tiveram sempre razão
aqueles que enumeraram ignorâncias
sobre o sangue dos outros;
ainda custa a acreditar que a história se repita
todas as mães caem da mesma forma
sem anjos a ampará-las do cimento
o inferno suporta-se assim:
com velas e bíblia marcada – fácil seria apenas gemer
a cama da razão ficou desfeita
agora ele é um domingo
e o que se passa – demasiado horrível para ser
mencionado
nenhum vocábulo deteve a queda da mãe
na ravina do cérebro onde ainda se ouve
o completo gemido do fémur
para além do real
segreda-se;
alguns – até os filhos – concentram o desdém:
não lhe conheciam o colapso mórbido
os modos silenciosos, a sua vida privada –
os alunos puseram-se a rir como figurantes
o homem teria então mais de cinquenta
um vertebrado embalsamado para a aula
de anatomia
erguido o pranto para toda a vida
ao leito – o da mãe – regressaria em ternuras íntimas
com a roupa até ao pescoço
«receia-se que seja um caso perdido»
assim se fala dele por aí
a cair aos pedaços feito num humano destroço
a casa espera, ele espera
reconhece a fonte que o deu à luz
prometeu ser virgem daí em diante
a boca do ventríloquo que um dedo tocou
escondido no estuque segura a
memória;
desse tempo não vivido guarda a vontade
de um lamento e um pouco de ódio;
dorme muito pouco e fica sentado na cama
quanto não daria para odiar a mãe
odiá-la por ela lhe roubar a água quente do banho
a lavar pratos
era apenas desse ódio que agora precisava
a alma deste homem é um simulacro e a poesia
riu-se, orientada:
naquele tempo tinha fama de escrever muito
depressa
– mas ele não pensara mudar de opinião
como com todos os homens ouvia o eco das vozes
dentro da cabeça, e com a idade achou isso normal
– «a quem não cai uma mãe uma vez por outra?» –
disse a si mesmo – «a quem não cai?».