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Dez20
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL - UMA MULHER, UM COMETA
Ela faz noventa e dois anos
e reuniu toda aquela gente à mesa
umas quatro gerações reencontradas
nos anéis da sua idade
porém, como acontece com todos os velhos
ela – que era a soma de todos aqueles rostos –
não acompanhava nenhuma conversa
virava a cabeça ora à esquerda ora à direita
e nenhuma palavra formavam os seus sumidos lábios
encarcerada numa cela de afectos estridentes
onde apenas para si o tempo era inexistente
por ela ser o próprio tempo
acontece a todos os velhos passarem a ser fantasmas
demasiado decorativos para serem levados a sério
(e os nossos velhos não são diferentes)
ela assistiu a filhas que ruminaram
o seu mau humor durante anos
a noras demasiado desamparadas
(o muro de Berlim caiu entretanto)
a divórcios a que se recorreu com alguma frequência
a palavras nunca pronunciadas por cobardia
ao caso de um neto embriagado que
tentou arrombar a porta e gritou ameaças à mulher
a bisnetos com ou sem padrasto
a uma grande distribuição de generosidade e ódios
deu conta de tudo isso
agora, os seus olhos pairam como abelhas
sobre cada um daqueles rostos
e enquadram-no na sua história
formam pequenos filamentos como os da teia invisível da aranha
parecem olhos perfeitamente naturais
de um cinzento desmaiado e tolerante
nunca mais voltaram a ter importância
para ninguém
mas sabem a que ritmo cresce cada planta
e guardam à chave
com um sorriso a que ninguém prestou atenção
o destino de todos os presentes.
António Jacinto Pascoal, Dezembro de 2020