29
Jan20
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL - PRIMEIRO DIA DO ANO
Viajámos de automóvel
deixando para trás paisagens
que num súbito olhar eram riscos em movimento
ao nosso lado
às vezes árvores mais distantes em câmara lenta
e à nossa frente – no negro asfalto – uma linha branca persistente
a separar a nossa vida da nossa morte
e o que deixámos para trás?
paisagens dias meses pessoas
mais um ano
as malas do passado
seguiste comigo em silêncio
ambos levámos pensamentos guardados
como num túmulo
e quem sabe eu tenha entrado no teu cofre
e tu habitado a caixa dos meus sonhos
(é tão evidente que não dizemos tudo um ao outro)
calámos mil palavras num lapso de tempo
demasiado próximas para serem ditas
ouvia-se somente o motor do automóvel
e o ruído de corações atados
viajámos cruzando estradas
ladeando montanhas
acompanhando vales
cercando as vidas que ambos mantemos
e o que procuramos lá à frente?
as nossas duas almas
segredando o futuro
que esconde um tesouro por descobrir:
o quarto com todos os instantes não vividos?
aquilo que ainda é possível reservar para nós os dois?
Quem sabe o que nos espera
no final da estrada?
a impaciência o ódio o mais extraordinário amor?
Pelo caminho
pedaços de realidade entraram
na caixa do automóvel:
o cheiro da fábrica de celulose
e depois – alguns quilómetros depois – o odor quente e doméstico do lagar.
Lembro-me de que ainda sossegaste a tua mãe
com um telefonema, quando anoiteceu
durante a viagem.
(Ver-nos-emos neste mesmo caminho daqui a um ano?
e quem serão então esses dois – tu e eu – embalados
no cubo em movimento?)
Janeiro é um lugar de promessa.
António Jacinto Pascoal I 2020