05
Jul19
CRISTINO CORTES - PRÉ-ELEGIA, OU ANTECIPADO EPITÁFIO, EM TRÊS ANDAMENTOS
Para o Sócrates
1.
O mágico do animal não pensa decerto na morte.
Como poderia pensar no que para ele não existe?
Olha-me, e ao mundo todo, do fundo dos seus olhos
Já o hábito aboliu o nevoeiro instável do tempo...
No seu sono sem sonho, no seu leve dormir
Não há árvores nem frutos simbólicos, nem o canto
De uma ave invisível, e até o perpassar
De uma cadela o não levaria a seus olhos entreabrir...
Às vezes estremece, puro instinto, se um sopro de vento
Penetra sem aviso nesse eterno e frágil presente.
Ele respira, sem qualquer protecção, sobre a terra
Em natural comunhão com a vida que o atravessa
Em paz, sempre, com os eflúvios que emana e encerra.
Para ele, animal mágico, a morte não existe.
Não sabe se lhe falta muito ou já pouco, nem sequer
O conceito, ou a questão, faz qualquer sentido.
De alguma forma a morte dele sou eu que a sofro
__ E sofro por antecipação.
2.
Olho para o cão... Da sua anormal passividade
Me nasce a interrogação sobre o cedo e o tarde:
Será que chegou ao fim, estará para morrer
Este animal que connosco, há tantos anos, veio viver?
O que será melhor, o que será possível fazer?
Soltá-lo, já o pensei, que ele vá, fixe e cheire
As flores e as plantas, e onde tiver de ser
Se deite quando quiser, e, se for o fim, que o aguarde
Na sua inconsciência de bicho doméstico e caseiro,
Aceitáveis limitações de bom e pacífico rafeiro
Toda uma década aqui nos pontuando a existência
A dele, e também a nossa, fluindo em vária sapiência
Para ele agora inútil, de tudo desinteressado
Como alguém com os negócios todos já bem encaminhados,
E apenas lhe restará um último e sofrido suspiro
Não de lamento ou cansaço, mas apenas surpresa
De quem não é mais o que antes era e só então pudera.
Será, não será? Dessas matérias todas sou eu ignorante
À cautela preparo as ferramentas , e o local no jardim
__ Dessa forma antecipando seu inevitável fim...
Oxalá seja falso alarme, prurido de jasmim
Gravidez de vento em meus neurónios, passageiro quebranto.
3.
Sobre a cova que será sua uma roseira florirá.
Em seu aroma progressivamente ele se transformará
E na vaga memória dos meus filhos
__ E na minha também, por prudência e cálculo o admito __
Insensível mas fatalmente, qual novo rito
A pouco e pouco o rigor do seu contorno se esvairá...
Mas não lhe deitarei fora a casota, nem a corrente
Ou a gamela onde ultimamente já pouco comia...
Foi único, não terá sucessor. A linhagem não continua
O espaço não será ocupado, o que fica é pura mobília.
E é com melancolia, e alguma vaga gratidão
Que o próximo epitáfio, com desculpável antecipação
Aqui o formulo, de alguma forma o sabendo inevitável.
Ah grande Sócrates! Raios te partam, dizia às vezes
Mas era sem intenção, claro, tu bem o sabias
E a mal me não levavas, aliás nem te calavas
Se com essa intenção eu assim te insultava...
Era uma boa relação esta, por mim puxavas
E só depois de teres ido, a falta te sentirei, como é normal.
Mas o teu tempo passou, bem vejo que estás quase
E vai, vai já que tem de ser, e o que tem de ser
Tem muita força, assim é nos homens como nos bichos
Tu não tens de o saber, oh Sócrates, nem tal seria próprio
Mas nem por isso tu deixarás de morrer
Quando o tempo for cumprido e a tua hora chegar.
Consola-te, se puderes, pensando que ainda cá fica
Quem assim te falou. E mais não queiras. Nem o terás.