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Jul19
JOSÉ JORGE LETRIA - OS PÁSSAROS NAS PALAVRAS
Os pássaros moram nas palavras
e querem levá-las com eles asa por asa,
vento por vento, até onde o seu voo chegar.
Os pássaros nunca tiveram medo
das palavras e dos mundos que elas nomeiam.
Um pássaro aflito sabe sempre a palavra certa
para afugentar a noite ou para ganhar o céu.
Os pássaros sabem que as palavras,
sejam elas de decretos ou sentenças,
nunca são mais fortes que a magia do voo.
As palavras podem erguer estados, cidades,
pontes de assombro e luz mas nunca conseguem dizer
onde começa e acaba o mistério
de quem lá em cima vigia a terra
para que os passos titubeantes nela se não percam.
Os pássaros não gostam de passear
nas pequenas mãos frias dos chineses
que fazem deles cães alados do instinto
que nunca se rendem ou desistem.
As palavras, mesmo as mais justas e exaustas,
podem prender ou libertar, mas nunca têm
fôlego bastante para chegar aonde o sonho
não mora e a aflição ganha asas para fugir.
As palavras podem ser juízes, arautos e bandeiras,
códigos em que a razão meticulosamente se amotina
sem nunca se excederem no adjectivo ou no adorno,
sem nunca se embriagarem com a beleza cantante
de um enfeite que as reduza.
As palavras têm a exacta e límpida medida
do que foi escrito com a geometria de outra fala
para dar ao homem o alento que o leva a encontrar a luz
na apertada teia de um lugar que a verdade escolhe
para ser ovo, semente, raiz ou voo liberto.
As palavras querem somente perder-se e renascer
de uma fonte secreta em que tudo o que é dito
nos liberta por ser único e total, dentro de nós.
Lisboa, 2018