MARIA BRÁS FERREIRA - O RETORNO
Clara saiu de casa como se impelidas as pernas estivessem por uma espécie de mecanismo de sobrevivência. Essas línguas de prudente imprudência que por tantas vezes nos ensinam a duvidar da matéria persistente, do consenso.
Durante os dois dias de repouso, ausentes os familiares da casa, recolhidos na vivenda de férias ao alto alentejo, havia tomado conta do lar, chegando mesmo a adivinhar por entre as licras que lhe enfaixavam o corpo, um ventre saliente, os cabelos arruçados e os sopés das pálpebras formando incisivas argolas de pele flamejantes, ainda que o seu rosto incorresse na geografia perdida de um tesouro sacrificado à ganância. Os gestos sumidos com que separava a roupa branca da escura eram o feroz ditado de que uma estranha contradição a separava dos seus, tão simplesmente por lhe não ocorrer possível desfecho genealógico. As saliências eram, como se diz por hábito, coisas da cabeça. E as lamúrias interrompidos golpes aplanados.
Clara decide sair, convencida (compulsivamente) de que a sua aula de mestrado está agendada para aquela tarde chuvosa, em nada convidativa a retiradas. Mas não era uma fuga. Simplesmente o cumprimento metódico do horário, impreterivelmente respeitado por aqueles que trabalham na construção de um carreira académica, necessariamente prodigiosa. (quase) Tudo ou (quase) Nada.
É importante que lhe não irrompa a felicidade. Há que fechar a boca, unir as pernas e procurar panos a enxugar mênstruas.
Evasivo? A escrita. Apenas.
Sair de casa corresponde sempre a um acto de transferência, de intimidades não raras vezes precipitadamente julgadas cavadas, num terreno naturalmente ocupado. A essa desarrumada pretensão, mormente feminina, dá nome a loucura implicada no momento de desagregação como o parto. O terno desapego abafado, escorredio, da cria nascente. O parto: do bebé?, da mãe? A assumpção do limite, temporal e físico, de um movimento duplo de separação e compromisso: o tempo estirado nas veias latentes, das mamas intumescidas, do aperto que cala o choro, que mói a pele e gasta a garganta. Nessa monologia materna, Clara sai. O prédio percorreu-o sem deixar mácula, o autocarro apanhou sem olhar o vizinho, a entrada escolheu sobre outras, sem lhes saber da conveniência. Assustou-se na passadeira quando ficou verde. Ter permissão para avançar, para enfim respirar em comunhão, como ordem que lhe consentisse o corpo. Tudo isso a lembrava do momento em que chegando a casa se aperceberia que o esquecimento a houvera abandonado — não mais essa desculpa solteira e vaga. Desabrochava, sim, agora, qual joelho de fêmea combatida, o expresso desejo de sair. A aula não era ali. A aula era, como de costume, à terça-feira. Assim rasgou o desejo o ventre dorido frente ao espelho e nele viu reflectido um pequeno embrião, com o seu rosto de mulher encrustado no vazio implacável da meninice. De volta, no vidro da janela do autocarro os fios escorrendo de chuva — cruel pois húmida é a superfície que a evita, e seca a que a ama de dentro — apenas poderiam incandescer a reminiscência dos licores suados pelo corpo, a que forçosamente se dedicava a expelir para deitado regozijo apalavrado do outro. Aos automóveis que passavam apenas lhe era imposto associar à velocidade do corpo amante, a roncos, que a não possuía como o anterior, antes se somava à memória como um objecto inútil e que, no entanto, nos consola de que maneira em certo momento.
Tornada a casa, tudo permanece no sítio. Tornada à foz das mãos bravas, do tédio azuliante, a caçarola queimando a polpa dos dedos, Clara repousa um instante e toca, levemente, não vá cair em fundas empatias, a desordem de estar sacrificando o esquema de tudo a tudo a que não deseja tocar-se.