01
Jan21
ÁLVARO TARUMA - DÁ LICENÇA: DEIXA PASSAR O POEMA
Tu que só o sopro da palavra recobra do olvido
Nebulosa memória ou povoado museu do nada
Grandeza que de si própria desconhece
Abre-te até ao tutano do teu nome
Mostra-nos a seda interior do coração
Os cantos vidrados à luz de um petroleiro de lágrimas
E de suor e de sangue e do ritmo da vida que desvanece
No barro na argila na madeira no zinco
Matéria suburbana dos caniços e da poeira das estradas
Écloga de que cantou Zé o poeta da fábula de um país que se deita
Do lado onde as circunstâncias se sobrepuseram à urgência
Da fome de quem segurava a vara e toda a prole de cabras
E com seu dedo solar apontou ao abismo e a paisagem se fez um campo aberto de areia.
Hoje transpomos o vitral das varandas imaginárias
– dá licença – batemos a porta e a noite em ti
Dá licença – que te abras aos acordes das guitarras esquecidas
E que do alto dos minaretes desça febril a voz de Deus
E embale as tuas salas amplas como a generosidade das suas gentes
À espera que do céu caia o milagre prometido com a manhã prenhe do coaxar dos
batráquios.
Dá licença para novos nadadores olímpicos porque a Catembe não é assim tão longe
Como as trinta moedas para atravessar a portagem.
Dá licença para novas geometrias arquitectura forjada de boca em boca
E as formas e os cheiros e as visões e os temperos a assaltar as janelas
E a plural aventura que é viver deste lado obscuro do coração
E ter as noites como vigílias com os dias a passar como a ponta de um cigarro
Dá licença para a chuva e para o vento e para o olhar do néon da cidade alta
Com a fotografia de pedintes invisíveis ou daqueles que ou se calam
Ou sua voz se nega ao ouvido porque a posteridade é uma mesa vazia com uma flor
no centro
E a alegria é a diferença entre ter um sofá ou um lugar onde se sente.
Dá licença aqui – batemos nas portas e na noite e nos ovários luminosos
Para que nasçam os filhos e novas utopias e novos olhares nas velhas objectivas
Sem os rostos frágeis e sazonadas imagens a preto e branco onde uma mãe protege a face
Com o pedaço de jornal com o retrato do vilão que vendeu o país e a esperança.
Dá licença: deixa passar o poema.