08
Abr19
AFONSO DIAS - RENOVAÇÃO
sei bem o medo do escuro em menino
e da polícia em rapaz
e o medo da guerra
sem esperança
e o medo do sexo
fugaz
e trémulo
da adolescência
esvoaçante e verde
e o medo aos vinte
e aos trinta
e por esse sempre inquieto
tempo
com muitos humanos bons
e alguns humanos feios
no cerco do coração
e a sempre incompleta
renda de penélope
certeza e equívoco
a desenhar caminhos
por entre canteiros
e cânones
e assim
na constante viagem
se chega ao porto
da germinada conclusão
eu sou o personagem
em que mais confio
- e não o mereço -
porque sou quem melhor conheço
nos cheiros
nos segredos
nos prantos secos
nos risos silenciosos
a envolverem noites
de reedificação das memórias
de solitária angústia
de carícias frescas
e totais
pétalas
de champanhe
marfim rosado e cetim
e chocolate preto
a desenhar a pele desnuda
mas por muito que se evoquem
suspiros de repouso
e lágrimas de assombro
há um largo caminho farpado
a desfilar permanente
no cinescópio
das indignações de gelo
uma construção
erguida pela engenharia demolidora
e pela sanha da maldade
poderosa e violenta
sem música e sem cor e sem poesia
é bem verdade
que merece confiança a morte
que tudo rejuvenesce
as várias mortes
que reconstroem
as estruturas derrubadas
e agregam as moléculas dispersas
os filósofos
no enlevo apaixonado da metafísica
nunca perceberam bem
a proximidade
constante e fiel e perfeita
da arte dialéctica e escultora
da morte
a eclodir nos rebentos
a perfumar o mel
a fermentar o vinho
a atear a lua na noite grande
a despir o sexo
com a lentidão da florescência
das orquídeas
secam os rebentos
e são palha
depois estrume
regressa em seguida o verde todo
derrama-se o mel
secam os favos
e uma nuvem de pólen muito jovem
asperge as flores
embebeda as abelhas uma a uma
e regressa um choro bom
nas lágrimas de doçura clara
bebe-se o vinho e é festa
vem a bebedeira e é veneno
azeda o vinho e é sujo
e um mosto novo e espesso
espreita o perfume da malícia
e renova a comunhão da festa
encobre a lua
a parede nocturna dos medos
mas amanhece na noite negra
o aroma terno que acende a luz
e a madrugada resistente
renova-se
e tudo recomeça num rodopio
de vitória
e de frescura
21.10.2018