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GAZETA DE POESIA INÉDITA

Espaço dedicado à divulgação de poesia original e inédita em língua portuguesa.

GAZETA DE POESIA INÉDITA

02
Out20

AMADEU BAPTISTA - CORDÃO SANITÁRIO

                          (para José Miguel Braga)                                 



É garantido, não baixaremos a cabeça e apostamos
tudo na beleza que resta. Não é preciso perguntar
se é difícil, é óbvio que é difícil, tantas coisas
que tínhamos e deixamos de ter, ou só continuamos
a ter pela bênção de uma réstia de esperança, de uma luz
que apareça na noite que se amplia, um som
que nos encaminhe no percurso entre a janela das traseiras
e a varanda, entre o que somos e o que agora
pensamos ser, completamente vulneráveis, talvez corajosos,
talvez optimistas, porventura derrotistas na mitigação
que avança. Não parámos para pensar o que custa a vida,
olhávamo-nos uns aos outros como se fôssemos formigas,
ou, dito melhor, olhávamo-nos como só os adversários
se olham e chega agora isto, este desmerecimento, esta
lacuna maior entre nós, isto que nos faz sentar sobre uma pedra
para avaliar as perdas, para avaliar quantos mortos decorrem
desta catástrofe onde estamos febris e nos custa respirar.

Não sabemos o que esperar de melhor ciência e do vinho
eremita, lavamos as mãos, lavamos a cara, mas o brutal silêncio
confina-nos às quatro paredes do infinito, tantas vezes nos repelimos
que agora não sabemos o que esperar, o cão manco, o gato cego,
a praia negra e deserta que fecha o horizonte, esse lugar
indiscernível onde as palavras estão despojadas e surdas
porque o amor de hoje é um exemplo de confinamento,
um beijo que se não pode dar, um abraço que se adia,
um toque em que os entendimentos se desencontram
pela maldição da fobia, da doença, da peste que grassa,
este teor epidémico que veio de longe para ficar
nas circunspectas alamedas das enfermarias e das morgues.
Não, não sabemos o que fazer aos pulmões, à pulsão
que tivemos e deixamos de ter, a esta abundância de finitude,
ainda que algo nos diga que o descalabro irá cessar,
assim que todos os mortos estejam contados, todas as vicissitudes,
todas as artimanhas possíveis para que escapemos ilesos.

É garantido, não iremos ceder à correria das sombras,
ainda temos um resto de cevada dentro dos bolsos, algumas
anémonas, alguns grãos de alegria, não será desta
que engolimos a língua, não será por certo agora que iremos
desistir do que temos oculto, do que a noite ilumina
com ásperos dardos e lâminas intensas. A matéria da luz
progride sobre nós, a mostrar-nos seres admiráveis, imperfeitos,
com grandes dificuldades de locomoção, mas unívocos
e solidários na desenvoltura do vómito, isso a que alguns alarves
chamam ‘capital humano’ e são, afinal, rubis, topázios brancos.
Na voragem, a beleza há-de sobrepor-se ao declínio, ainda
é cedo, ainda é, talvez, tarde, mas a maldição há-de decifrar-se,
é para isso que estamos na estrada, limitados a quatro paredes
como quatro praias, quatro pontos cardeais, quatro
desatinos que ultrapassam o delírio, uma incerta certeza,
este modo de atravessarmos o campo de batalha desarmados
mas certos de que, garantimos, vamos vencer em breve o adverso.

Acaba um dia para que outro dia tenha início, olhávamo-nos
como só os inimigos se olham, mas o carrajá e o milefólio
hão-de reverdecer, é por esse caminho que ansiamos, por essa
pedra, por esse coração que nos aproxima, pelo tacto
com que antecipamos a beleza e vemos tudo curado à nossa volta,
o mar, a noite, a grande aflição, o sono, o nosso diálogo permanente
com os mortos e os vivos, essa língua irresignada que nos faz
semelhantes, iguais, diferentes, múltiplos, insondáveis,
este braço que damos a quem vai connosco ao longo da jornada.
Se somos ou não somos seres luminosos, não sabemos,
mas os nossos acampamentos resplandecem
entre as árvores e as suas clareiras, o fogo do instinto,
o amor com que zelamos os que caíram, esta pequena
verdade que se vai fazendo grande quando confrontamos
a tormenta com palavras indóceis, com reconforto, com um amável
prato de sopa, um alguidar azul para lavar cada um dos dedos,
esse rasgão de claridade que julgávamos para sempre ter desaparecido.



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