ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO - O VERBO GAMAR [nota filológica para um curso de cultura portuguesa]
O verbo português «gamar», hoje tão corrente na forma do infinito impessoal, como se vê no exemplo «no gamar é que vai o ganho», mas que se conjuga com propriedade em todos os modos, tempos, pessoas e vozes, remonta ao século XVI e à gloriosa época da expansão marítima no Oriente. Antes não se dá notícia deste verbo, que deu depois o substantivo «gamanço», hoje tão prestigiado, tão comum e tão decisivo nos centros nevrálgicos da economia mundial. Mesmo no século XV, no momento em que se iniciou a gesta marítima portuguesa, não há qualquer sinal que indicie a formação da palavra, que só surge com a Casa da Índia, os seus feitores, tesoureiros, tratos, guias, remessas, depósitos, recibos, medidas, regimentos, equipagens, depósitos, soldos, fretes, direitos, quintos e quintaladas.
Coube destarte ao ínclito varão que falou cara a cara com o grande e Tormentório Cabo, Vasco da Gama, a generosa honra de estar na origem de tão subida acção. Na segunda viagem que fez à Índia, em 1502, à frente de 20 velas, além das duras represálias que exerceu sobre Calecut, onde tão mal recebido fora em 1498, tributou vários reis e sultões em nome do rei português. A marinhagem quando viu em Quíloa os 500 miticais de ouro do tributo a entrarem no portaló da câmara do comandante não se conteve e declinou do seu apelido o ilustre verbo. Reportam fidedignas testemunhas que um deles – e o Guarda-Mor do Tombo de Goa pô-lo alguns anos depois no seu Soldado prático – exclamou com aplauso imediato dos outros todos: «Ó dulcíssimo gamar!»
Muitíssimos episódios ornamentam os feitos do grande Almirante, mas nenhum como este é tão digno de adornar a sua história e de ser contado, pois nenhum outro se introduziu como ele nos costumes, se expandiu nos hábitos e se impôs nas mentalidades e na civilização que a Europa criou no Novo Mundo.
15-4-20