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GAZETA DE POESIA INÉDITA

Espaço dedicado à divulgação de poesia original e inédita em língua portuguesa.

GAZETA DE POESIA INÉDITA

26
Ago18

CARLOS MOREIRA - "O ENTERRADO VIVO..."

 
 
 
o enterrado vivo está vivo: o sol
não percebeu sua falta: a noite chega
sem aviso e deita noite sobre a noite
do enterrado vivo: é noite sempre
onde o enterrado vivo está: é sempre
noite quando o enterrado vivo é:
mesmo que cave em todas direções
estará vivo e enterrado: um tabuleiro de xadrez
nas paredes e o calendário inútil: para quem
enviar sinais de fumaça código morse cartas cifradas?
gastar seu aramaico com os vermes para quê?
enterrado vivo com seus livros para quê?
enterrado vivo: maldito enterrado vivo:
cravo na lapela flores ao redor a sombra acesa
de uma aliança: tudo vivo e enterrado
com o enterrado vivo: ele ainda é livre
para cantar: a música reverbera nas paredes
e no terceiro acorde já é outra música:
as palavras ricocheteando nos cantos:
fonemas bêbados se abraçando no ar
em busca de uma língua: os vermes
permanecem fora à espreita da morte
do enterrado vivo: reclamam da demora:
seus pulmões reciclam o ar? seus olhos
escondiam luz em que retina falsa?
os dias passam e os vermes esperam:
chove e os vermes esperam: é triste
a vida dos vermes: esperar a morte incerta
do enterrado vivo: o enterrado vivo vive:
vai libertando aos poucos a memória aprisionada:
a luz atravessando o quarto: a gargalhada
inundada de maresia: as portas se abrindo
e ela entrando vestida de sol: cães acompanhando
a volta para casa e logo desaparecendo:
bolinhos quentes de chuva brilhando entre
açúcar e canela: a voz livre ecoando no teatro:
o cheiro de uma mulher que se perdeu na multidão:
tudo vivo no enterrado vivo: nem alucinação
nem febre: só a pressão do ar nos tímpanos
que às vezes atravessa o hipotálamo: a palavra
hipotálamo e de repente o riso detonado
pelo falso cognato: qual o diâmetro
do hipotálamo de um hipopótamo? libélulas
têm hipotálamo? elas conseguem ver seu reflexo
enquanto colhem gotas? lesmas podem sofrer
de labirintite? ouriços da polinésia que vivem
cento e cinqüenta anos têm memória da infância?
o enterrado vivo ri: e ao saber que ri gargalha:
do lado de fora os vermes o escutam gargalhar
e se eriçam: devem ser gritos espasmos haustos
de sufocamento ou um possível enforcamento
com a gravata lilás: depois o silêncio: os que estão
mais próximos avançam um pouco seus úmidos
passos de verme: mas não: o chão ainda vibra
ainda há calor na terra: amargurados
deitam-se em círculo e esperam: maldito
enterrado vivo: capaz que mesmo morto continue:
como saber a hora de cavar salivar devorar?
haverá corpo ou num último blefe o desgraçado
provoque combustão espontânea? mumificação?
talvez se confunda com as flores? talvez
salte direto para o estado mineral: pedra
carvão cobalto urânio radioativo: triste
e incerta a vida dos vermes: no fundo
mais profundo o enterrado vivo aflora:
nem fogo-fátuo nem fluorescência de pétalas:
de alguma forma o enterrado vivo aflora
e dança: dança por dentro no centro onde
tudo começa: e sem pressa respira e dorme
e acorda: ontem sonhou que era uma trufa negra:
os cães da antiga madrugada devem estar a caminho

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