DIOGO VAZ PINTO - "TRAÇO DE NOITE UMAS POUCAS LINHAS"
Traço de noite umas poucas linhas
e já vos apanho, outras nem saio
tenho trancados na imaginação uns quantos
para descer e desancá-los, a língua
forçando os dentes
alargo o cinto, dou-me folga, descalço as botas
sobre a mesa, deixo a lama nos papéis
onde o meu nome mal se lê
riscado à pressa, canto
a canção desumana de um corpo que vem
junto às águas, depois de afogado
os olhos mais vivos
servindo-vos o leito do rio em copos
pudesse e gostaria também de viver
de chá fraco com natas
deixar camas desfeitas
achando natural que degradação e glória
cheguem juntas
isso e ter horas, como gente que telefone
ou escreva, toque à porta
tocando vez alguma a carne inteira
deixar de um nome ao lado da cama
o gosto mordido,
tremor de um fruto caindo à terra
sem que chegue a sujar-se
ou a casa deixá-la arrumada
de um modo sinistro
como um bilhete
numa agonia perfumada de gerânios maçãs
romãs
e vir friamente como os sinos descem
a beber nas fontes, vir pelas ruas
a testar a obediência da sombra
por mais alguns passos antes que fuja
um grama de veneno a horas certas
o mundo calmo como se escuta
nos carris de um caminho-de-ferro
o golpe quantas vezes pressentido
a separar-te a cabeça
corta-me o sangue lá onde nasce
essa história em que vens de porta em porta
como é próprio dos gatos
entregando cadáveres como dádivas
para trás, desde o escuro
a decifrar um gesto, uma frase
sem outro saber além do próprio corpo
como há quem o ofereça
digno de um significado antigo
a mão dando forma à boca, ao queixo
à maçã de Adão
dou por mim tão quieto como preso
a olhar-nos e se não pergunto
bem sei como só nos resta
envelhecer comovidamente
a ouvir uma história de galáxias devoradas
sedados pelo som das grandes passadas
a senti-lo dentro, íntimo, ínfimo
despedaçando-nos, o tempo
as horas e a sua insana paciência
essa corrente que nos puxa sem levar
aos que não se afogaram