21
Mar20
FERNANDO FITAS - FALANDO DE UM POETA (AL BERTO)
“vai por essa porta de água tão vasta quanto a noite”
Al Berto, in Recado
Corria o mês de Maio e fui a Castro Verde,
olhar o campo branco que o Caeiros pintara
naquela Primavera com a voz dos poetas.
Aí nos conhecemos nessa roda de amigos
e nunca mais nos vimos, a não ser nos poemas,
ou numa ou outra imagem que os jornais publicavam
dizendo onde parávamos.
Entrego-te estes versos, disseste. E fugiste da vida
pelo caminho da água que se furtou à fonte,
deixando-me indefeso ante o peso das sílabas,
o eclodir de elipses, o ecoar dos sons
e um súbito vazio carregado de palavras,
com laivos de silêncio a alguns pingos de chuva.
Não sei como escutar a música dos sinos
que despertam nos dedos o tilintar da ausência,
os cheiros rente aos olhos trazendo nostalgias,
o fumo que se eleva de uma lareira extinta
e a cinza costurando a luz de cada frase.
Sei que não é possível sentir-me furioso toda a vida,
mas como pode um homem deixar de plantar uma roseira brava
no quintal da memória, sem perscrutar a terra,
sem vislumbrar os rios, ou entregar às aves
as esdrúxulas angústias que cercam suas sedes?
Quem tem nas mãos um verso, assim que a noite nasce,
não coloca no rosto o frio com que o silêncio concebe suas estátuas,
pois sabe que entreabre uma porta ou o mar
e a lonjura de um barco carregando seus porões,
na sôfrega vastidão da claridade.