21
Set20
JOÃO PEDRO AZUL - ESPELHO
A primeira noite: não dei por ela
A seguinte: não deu por mim
A derradeira: não foi a terceira
Na sala dos meus avós de leite
que era um hall e dois quartos
um espelho
por onde o meu avô
via o regurgitar de um televisor
de filtro alaranjado
[talvez] na última vez que o vi
Ele
que era manco desde o início
mostrou-me o medo
confortavelmente deitado
ao seu lado
na cama
Nunca entendi essa coisa de levar
o medo para casa
e aconchegá-lo no leito
mas
tal como o meu avô
eu cresceria às aranhas
no meu quarto coberto
de sombras
Os medos reflectiam todos em mim
assim como aquelas palavras
que mais pareciam soluçadas
por mim
eu não quero morrer
Quase todos os dias volto àquele
quarto-apêndice
e vejo o medo colar-se ao meu rosto
e a criança que eu era deitar-se ao lado
dessa outra de olhos azuis agigantada
que é o meu avô
eu também não queria morrer
A sobrevivência é uma árvore
cujo fruto lembra as laranjas
em Agosto