06
Jan21
JORGE MELÍCIAS - TRÍPTICO DA ESPERANÇA
Fala do mouro Aarão
Não o hábito mas o vício.
O aferro com que não revezo
todo o mal por um indício.
A inocência que nas mãos apreso
e a alegria com que leso
tudo o que é belo e propício.
Ah!, trocar o escrúpulo pelo vezo
e por paga a barganha do benefício.
Nunca a culpa foi tão fútil exercício,
nunca o perdão teve tanto de desprezo
ou conheceu menor uso o cilício.
Mas a vilania, a abjecção, tudo o que prezo…
Basta! Deixem-me ao que sou destro!
Não a vossa virtude mas o meu sestro.
Lamento de Prometeu
Foi para isto que uma e outra e tantas vezes
neguei ao corpo a humildade do medo?
Para isto roubei eu o fogo aos deuses
e ensaiei da esperança um arremedo?
Para isto sofri o mais absoluto degredo?
Sonhei conquistas que hoje sei reveses
e me neguei à complacência que vos concedo?
Para isto? Para açular leões e recolher reses?
Não, não foi a dor que me dobrou, sequer a soberba,
mas o imperativo da escolha, uma redundância.
E se da vitória me caberia sempre a parte acerba
vós merecíeis mais que esta pífia traficância:
não o tímido agravo que agravo algum averba,
mas a própria beligerância.
Medeia dirigindo-se ao coro
Perdão? O perdão é a única aquiescência
que não me posso permitir. De resto,
choro tudo: o intento acima da diligência,
o punhal bem mais que o gesto.
Vós, que deste amor aziago e funesto
me quisestes generosa anuência,
abnegação, brandura onde era toda esto,
como ousais agora rogar-me clemência?
Ainda que o mal exista porque existo,
e que eu seja a vossos olhos a minha acção,
se nada mais sabei ao menos isto:
o que eu matei foi em mim a compaixão.
E a loucura teve tanta parte nisto
como parte nisto teve uma réstia de razão.