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Out19
JOSÉ JORGE LETRIA - O IMENSO CORTEJO DOS VENCIDOS
É breve e sombrio o caminho dos vencidos,
vereda de escassa luz em que os passos se trocam
e não há deuses que ouçam a voz fugaz dos aflitos.
É garbosa a posição dos perseguidos,
alinhados nas bermas sem uma queixa,
sem o rumor de uma lamúria muito antiga.
E há sempre um escriba acocorado
que narra a história dando voz aos vencedores.
Nunca o seu coração bate longe do trono e do púlpito.
Os vencidos caminham para o único
inferno que conhecem e que se chama esquecimento.
Largaram armas, armaduras, os escritos vagos da memória,
deixaram a família, as amantes, os cavalos, os filhos pequenos.
Não falta quem lhes chame grandes sofredores
sem nunca esquecer quem dá o pão e o trabalho.
A bala, o gume devastador, a corda que abafa o ar
são agora o museu triste das batalhas perdidas.
E há sempre uma mãe que rasteja no final do cortejo
chamando pelo filho perdido, pela filha atormentada.
Foi assim nas arenas de circo, na terra sangrenta
das batalhas sem horário, nas ruínas das casas
em que mais ninguém se lembrará de contar as horas
que faltam para ser dia no meio das lágrimas sofridas.
Esta é tribuna dos vencedores, dos que contam as mortes
como se contassem os votos que ninguém hão-de eleger.
Esta é a tribuna onde estão as vozes que anunciam
quem ganhou e quem perdeu e muitos são os dias
em que o sangue e os ossos dos vencidos
depressa se tornam bandeiras nas mãos febris
de quem chega somente para cantar vitória.
É assim a nossa vida, a nossa história, é assim
a imensa rede social da nossa miséria sussurrada.
Já não é preciso haver Nuremberga, Panteão de Adriano
ou Muralha da China. Quem perde é quem deixa de contar.
E fica somente a história que depois alguém há-de lembrar.
Os vencidos somos sempre nós a dizer que tudo se repete
com o colorido exuberante dos triunfos cantados.
Por cada Nero que morre há sempre um Che que volta a cair
com o sangue que o amor das mães não consegue conter.
Por cada filho vencido haverá um outro vencedor.
A peça é sempre a mesma e só mudam os papéis.
O público nunca muda, pois, se mudasse, acabavam
os templos e as bancadas do coliseu por ficar desertos.
Os vencidos somos nós a lembrar que a roda nunca para,
implacável e veloz , a distribuir vitórias e derrotas
como se acrescentasse vida ao sofrimento de quem espera.
Hoje celebramos os vencidos por sabermos que esta história
é linear e cruel como a própria vida, sem vencedores capazes
de narrar o mundo de outro modo, entre coroas e cânticos,
com a multidão a implorar que o espectáculo nunca acabe.
Se porventura Deus existisse, talvez acabasse,
após muitas súplicas e preces, por satisfazer em festa esse magoado desejo.
12 de Setembro de 2019