josé luís borges de almeida - CHAMAM-ME POESIA
é sempre assim, durante aquelas horas paradas da
noite, em que ao balcão de um bar quase a fechar
olhamos para o fundo de um copo vazio onde não
é agora possível afogar os pensamentos sombrios,
que ela entra com aquele seu passo mais calculado
do que decidido, e dos inúmeros bancos vagos vai
escolher um, esse mesmo, e se senta ao nosso lado.
depois tira da bolsa o clássico cigarro, pede lume e
pergunta com voz mais decidida do que calculada
se podemos pagar-lhe uma bebida e conversar um
pouco. dizemos que não, não queremos, ou ainda
melhor, inventamos uma desculpa e respondemos
que não podemos, não temos dinheiro. ela devolve
um olhar desanimado e pergunta se sabemos quem
é. o cansaço tomou conta de nós, um gesto com a
cabeça responde que não. então ela sorri, inclina
aqueles seus lábios pintados e diz-nos ao ouvido:
sou quem poderia melhorar o que escreves se em
mim acreditasses, sou quem te ajudaria a escolher
palavras mais certeiras, as que tanto procuras sem
jamais teres sucesso. há um clique em nós: ah és a
nossa musa, desculpa, não te reconheci. não, nada
disso, diz, sou só uma puta a quem ninguém paga
um copo. eu bem os vejo a olhar-me com uma gula
mal disfarçada. depois, quando os enfrento, fingem
que nem me conhecem e nunca dizem o meu nome
mas, vê lá tu, os polícias de giro chamam-me poesia.