JOSÉ LUÍS MENDONÇA - MADRIGAL
amanhece. uma mulher caminha sobre o mar
com um pássaro de luz na sua mão aberta.
aos pés dela arcadas de água lisa desenrolam pergaminhos
de ocres mitologias sobre a invenção do mundo
e cem mil crianças sem olhos nos submarinos atómicos
jogam ao zero-zero a breve noção de ser.
dos seus flancos voam palavras de fogo ainda húmidas
no rasto azul deste poema que ninguém escreve.
eu deito-me com ela na esteira branca que o sol
estende sobre as ondas até ao infinito.
ao longe veleiros de espuma sobre a menstruação dos peixes
escutam a cal dos nossos intestinos.
tutela-nos um espírito sóbrio de palavras.
e os mortos sobem à tona da água para ver
como nasce o poema coberto de limo e algas verdes
entre os lábios sangrantes do útero do mar.