08
Out20
JOSÉ MIGUEL BRAGA - FUMAR
Querida nicotina
Talvez por te fumar
Eu possa ter no fumo um sentimento
Mas o incêndio repousa no meu vício
E o mal mostra-se infame
Agora fumo um verso uma inocência
Um desejo quente e transverso
Como haveria de ser de outro modo?
Apelo ao aspecto submerso
Sou um náufrago do fumo
O corpo é grave e sujeita-se à navegação
Fumo um pouco mais
E ponho-me a fumar e a ir
O fumo a desaparecer por uma luz infinda
Fico a olhar nesse longe a chama oculta
Que se mostra e se destroça e se destina.
Nós fumamos e há mais fumo no ar
O fumo no fim da conversa
O seu génio de nuvem a sua imagem
A velocidade e mais um passo
Só dói um pouco mais este abraço
Eu queria perder-me daqui a pouco
Se isso tivesse fumo
Se isso tivesse o âmago do vício
O fumo enche-me a boca
Ó nicotina astros desperdício
Amamos o vício e abrimos a porta
Entram nomes flores e terra
Vamos só fumar mais um cigarro
Esta é a última noite meu amor
Fumo e cerveja os corpos descidos
Nus do vício e do seu esplendor
Agora a sonolência
Tu dormes e eu preparo a mala
Não pesa nada cabe no bolso
Não faz história nem eu me ajeito
Encontro-me no sítio combinado
Talvez perto do mar ou da esperança
A boa estrela é que manda navegar
E o poema pousado como um cinzeiro
Eu quero mais vício e um sólido lunar
Imagens que magoem até ao fim dos dentes
Para soprar uma raiva no vento
E depois o verso insuspeito
Contempla o gesto a chuva fria
Um deserto e uma estrela
Agora estou a acabar e pouso o que fica
Sem ter mais nada para fumar.