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Jul19
LUÍS FILIPE PARRADO - AUTO-RETRATO COM ICEBERGUE
Toda a mudez será castigada?
O icebergue é uma versão desamparada da voz
daquele que, aqui e agora, de uma outra coisa quer falar
e “não sabe como, para quê, nem a quem”.
Pedra de amolar factos e tesouras,
o icebergue é um rombo de luz negra que,
como se para sempre, reflecte
o inadiável material fluorescente da biografia.
Dessa outra coisa a haver a palavra que melhor conheço
é invocação, uma linguagem preciosa de segadores,
o orgulho de retribuir com delicadeza uma espécie de testemunho.
Corças escavam no peito se recito a essa luz
porque toda a operação singra em recitação,
dupla sombra dos espelhos visíveis
apenas na onda mais tardia que rebenta na falésia.
Neste súbito mergulho no mar o corpo
afasta-se definitivamente do espírito
que gerou a sua aparição e retorna,
como um filho de Édipo, à corrente gelada
que o empurra para baixo, para o centro
da sua própria origem e dissipação.
Agarrado mortalmente aos braços do náufrago
tombo no poço da noite sem o saber,
sem saber se no poço da noite quem me espera
é “o fogo amante ou a fera assassina”.
Só então compreendo que o icebergue
é matéria titânica e flamejante, resistente aos ventos
e às águas, que se desprendeu um dia do gelo continental
da língua para vir embater, em surdina, no estranho
e vulnerável casco de papel do meu absorto coração.