30
Ago19
LUÍS FILIPE PEREIRA - REQUIEM
O canto é seco
quando em seu dentro
dói um silêncio roxo,
um estertor de jasmim
pobre e audível,
de estátua quase,
uma inabitável respiração
entoada fria sobre o ouvido
das janelas abstidas
de paisagens
A sede é seca
de tão inútil:
um acento gráfico de algodão
nos lábios despintados
As palavras são
uma máscara de oxigénio
quando o coração bate ainda
no avesso da luz
a enxotar a morte,
o pedregulho de Sísifo
carregando,
de cada vez mais leve:
o poema é um aparelho
de medir a tensão
O corpo arrefece
a começar pelos pés,
nos edemas da morfina
húmidos de soro
gota a gota,
sem imagens: o corpo
demora a encontrar a noite,
as lâmpadas indecifradas,
demora a coagular o medo:
uma vez seco o medo
a vida pode acabar
O barqueiro aproxima-se
imóvel, vem na direcção
do papel vegetal da pele,
do seco invólucro do corpo
onde só a água dá nota
do seu peso
vem para respigar o sopro seco
e derradeiro