MANUEL DA SILVA RAMOS - MONSIEUR RAMOS DESPEDE-SE DO VERÃO
Monsieur Ramos despede-se do verão anunciando nas ruas que vai viver do
rendimento das suas recordações estivais até ao final da vida.
Mas ninguém acredita.
Voltou ao café que frequenta desde a morte da sua esposa – uma joaninha que
lhe tinha entrado pela janela numa madrugada de calor – mais desbronzeado e
a falar uma língua estranha que cheira a etar : o algarfez, que não tem vogais.
O dono do café questionou-o:
- Então como passou as férias, Monsieur Ramos?
- Bem. Limitei-me a olhar…Às vezes também a molhar o olhar.
- E o resto?
-É tudo treta. E contra- treta sem orgasmo. Se não fosse a água gelada vinha
pobre como Job…
Monsieur Ramos conta depois a primeira recordação: -
- Imagine, mon cher ami, que um dia, distraído como sou, fui para a praia nu e
de calção na mão. Levantou-se logo um burburinho dos demónios contra mim.
Chamaram o nadador-salvador, a polícia marítima, e todo um bordel de gente.
Queriam-me meter na choldra. Houve até um indivíduo do Porto ( devia ser
médico) que com a sua linguagem típica afirmou alto que eu devia ter o
testículo esquerdo mais quente que o direito e convidou as senhoras de meia-
idade a tocar no bolhão. Quem me salvou foi um vendedor de bolas de Berlim a
quem eu comprava todos os dias duas de alfarroba e que disse que só os
vizinhos é que levam no focinho, não as pessoas pacatas como eu…
O dono do café sorri. Sabe que o seu cliente é o mais sossegado dos homens
embora o tenha visto uma vez a tentar engolir um homem aborrecido que
trabalhava nas Finanças.
– Então, e para as próximas eleições, como vai votar?
- Rien. Se houvesse um candidato com um pé boto ainda seria capaz.
Monsieur Ramos paga o café e depois de andar uns metros mergulha no metro
para apanhar a linha verde em direcção aos Anjos. Leva no bolso uma bússola e
uma perna de galinha para o caminho.
“ A vida é bela” assobia Monsieur Ramos. Vai desarmado, direito a outras
recordações passadas.