09
Nov19
PAULO RAPOSO - "O MAR DE JUNHO..."
o mar de Junho é o primeiro abrigo,
mas demoramos sempre a chegar. porque nos interrompemos mutuamente
e por uma ordem qualquer, aleatória, que desconhece a origem
ou a esqueceu simplesmente, desavinda com gumes afiados e
intempestiva saliva.
adormecemos lentamente nas passagens de nível. tocamos as pedras de xisto
até queimar as mãos, matamos a sede por entre alfaiates ébrios,
trocamos as árvores gramaticalmente de lugar.
e o que está tão próximo, a noite imprevista e movediça como o coração, escurece os fios de água
esconde o visco das meticulosas aranhas, amplifica o enlevo erótico
dos sonoros anfíbios. enquanto procura lâmpadas para deixar a nú
a calcinação dos sinos, o dicionário cardíaco da escuridão.
suster o sopro, pregar a erva: primeiros sintomas
dos caminhos incompletos, corpos indisponíveis, suspensos
por cordas na falésia e correntes de ar, descendo entre a reverberação da umbra
para interrogar a flor do sal.
permanecer imóvel, esperar os pássaros: últimas palavras
amanhã talvez chegaremos a um banco de areia
e cobriremos a cabeça com com o que resta do lençol de ontem.
depois, tu e eu, exaustos deslindadas as ruínas, o cume da montanha,
com o pulmão esfomeado e as pálpebras em sede extrema
deslizaremos sob alvéolos de água, entre os cordões dunares
que sinuosamente
se desenham contra o louvor do vento.
Até se eclipsarem os sintomas, o canto da reia, e a estéril carne
prometer apenas a gangrena doce e azul dos dias.
(Paulo Raposo, 1 Junho 2019)