09
Mai20
RITA TABORDA DUARTE - POEMA ÉPICO-PANDÉMICO
Um poeta tem de escrever
não pode poupar-se aos versos
em tempos de martírio Um poeta
tem de escrever com quantas letras
traz na boca Um poeta há-de cair
escrevendo de bruços na trincheira.
O poeta deve mostrar-nos
com quantos versos se faz uma cangalha.
O poeta retira a louça limpa
da máquina de escrever,
arruma os talheres no percurso da rima
e volta a pôr no verso a louça
suja empilhada na pia Um poeta
tem de escrever o suficiente ao almoço
para sobrar comida para o jantar,
isto se não tiver um terceto de filhos
a devorar-lhe os sonetos ainda dentro dos sacos
que o poeta carrega do supermercado
com as patas da frente
Os poetas com versos únicos sobrevivem
muito melhor à peste do dia-a-dia....
Um poeta tem de escrever Lisboa
remanchada num remanso às moscas
e aos velhos que ninguém atura
nas ruas descampadas Um poeta
tem de escrever o engarrafamento
no corredor da ponte entre a sala e a cozinha
tem de escrever a população sem dentes
envelhecida e o aumento demográfico do sofá
O poeta aspira os pulmões aos livros que não lê
e inspira fundo os tempos de fadiga
sem dar à sola nem ao pedal ou à pata à asa
como os pombos e os outros animais.
O poeta tem de bater com estrondo
a porta da linguagem trancá-la por dentro:
um poeta tem de escrever
a métrica centrifugada dos lençóis
encharcados nas ventas da poesia.
O poeta tem de escrever em tempo de pandemia,
deve resistir escrevendo porque um poeta
não se verga, não se cala e é inicial limpo e inteiro
como os dias que hão-de vir e pelo menos tão alto
como todos os outros galgando a barroca da letras.
Um poeta tem de escrever.
E só deve baixar os versos
para chafurdar a esfregona no tinteiro.