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Jul18
ROSA ALICE BRANCO - ANTES DA NOITE NOS OLHOS DO PEIXE
Ali no molhe só o mar vem dar à mesa.
Talvez por isso as minhas raízes sejam planos
de fuga esquivos a promessas que toquem
o teu corpo. Atrás de nós as árvores seculares
são caminhos como rios que hão-de chegar
ao reverso do mar mas estendes a noite no dia,
o vinho nos copos e um sorriso no olho do peixe que
estaria fresco umas horas antes do anzol. O peixe
aberto no coração do mar é só mais uma dor entre nós
com batatas e salada. O vermelho do tomate
sangra-me o prato. Se fosse um crime seria
mais fácil pôr as armas na mesa e depois esquecer.
Mas sofro o desencanto de estarmos sentados
e a cadeira já não levitar como quando o teu corpo
sabia a camarinhas no orvalho. Entravas pelos poros
da minha pele na ignorância dos nomes na garganta.
Os olhos eram vorazes e as mãos — ou melhor
os dedos — eram as únicas raízes de que precisamos
na vida. O peixe olha a noite antes da noite,
a palidez das nossas vidas como um rio estagnado
tão perto do mar. Saberá que o anzol ainda não veio
colher-nos? O mar inverso dá à mesa. Com o azeite
desenhas a manhã a escorrer no prato. No meu corpo
cresce uma raíz que toca o teu, o mar resvala
para o vale e abre clareiras onde quer que a tua boca
me olhe em descaminho sem toalha, os lábios
bordados de ignorância feliz como o mar, o mar
que entra pelo mar e desagua num amor imprevisível.
Devo desculpas pelos preliminares desastrosos
do poema, agora que transbordo de mais um
de tantos enganos, tantos rios a caminho de nós.